Começa o texto/conferência falando da obra O Anti-Édipo de Deleuze e Guatarri, e desconstruindo a ideia do “complexo de Édipo” de Freud. Foucault diz que a peça é interessante, pois mostra várias e práticas jurídicas da época da Grécia Antiga.
Para Foucault, a primeira forma jurídica grega aparece em Ilíada, na parte que em Homero descreve a disputa numa corrida de carruagens entre Menelau e Antíloco. Tal competição possui uma espécie de “juiz”, uma “testemunha”, uma pessoa que está lá para observar e depois dar seu veredicto. Ainda nessa competição, Menelau acusa Antíloco de ter trapaceado, sendo que assim Menelau põe seu adversário à prova: Pede para que Antíloco, caso não tenha trapaceado, jure sua honestidade diante de Zeus, e que esse o castigue se fizer um falso juramento. Diante da situação, Antíloco admite que trapaceou. Menelau consegue, assim, sua “prova cabal.”
Em Ilíada já é possível observar formas jurídicas que existem ainda hoje nos modernos tribunais: a testemunha e a prova.
Foucault considera que Édipo Rei mostra muito melhor tais formas jurídicas porque toda a sua trama é baseada em testemunhos de várias pessoas que, quando juntos, formam a verdade sobre o trágico destino de Édipo. A “verdade” em Édipo Rei é construída por “meias-verdades” – evidências.
Diante da peste que assola Tebas, Édipo, o rei, consulta o oráculo de Apolo para descobrir o motivo de tal penitência. A resposta do deus é que Laio, o antigo rei, foi assassinado. Este é o primeiro testemunho. Mas quem foi o assassino? Surge, então, a segunda testemunha, Tirésias, o adivinho cego. Segundo a interpretação de Foucault, Tirésias seria o equivalente mortal do deus Apolo, sua sombra, uma espécie de avatar, portador da “testemunha” ou “visão divina”.
Tirésias revela que foi Édipo quem matou Laio, mas não exatamente nestes termos. Na verdade, tanto o deus quanto o adivinho falam “as suas verdades” em forma de enigmas, fato que é bastante constante em outras obras da literatura grega antiga que tratam de Apolo, já que o deus da certeza é famoso por ser enigmático.
Logo em seguida surgem duas novas testemunhas: dois escravos. O primeiro avisa que Políbio, “pai” de Édipo, morreu. Isso é ótimo para Édipo, é a prova que ele precisava para desbancar a teoria dos deuses. Ora, se Políbio havia morrido a quilômetros de Tebas, Édipo não poderia ser o assassino. Essa prova se mantém até a quarta testemunha se pronunciar. É o pastor de ovelhas que agora fala, revelando o passado sombrio de Édipo: quando bebê, Édipo foi entregue a esse pastor por Jocasta e Laio, os soberanos de Tebas à época. As ordens eram para que o pastor matasse a criança, mas esse, por sua vez, não cumpriu a ordem, levando o bebê para outra cidade e deixou-o sobre os cuidados de outro rei, Políbio. A tragédia de Édipo vem à tona: matara seu próprio pai e casara com sua própria mãe. Nesse ponto há também o testemunho de Jocasta, que confirma a história do pastor.
“O ciclo está fechado. Ele se fechou por uma série de encaixes de metades que se ajustam umas às outras. Como se toda essa longa e complexa história de criança ao mesmo tempo exilada e fugindo da profecia, exilada por causa da profecia, tivesse sido quebrada em dois, e todos esses fragmentos repartidos em mãos diferentes. Foi preciso esta reunião do deus e do seu profeta, de Jocasta e de Édipo, do escravo de Corinto e do escravo de Cinterão para que todas estas metades e metades de metades viessem ajusta-se em umas às outras, adaptar-se, encaixar-se e reconstituir o perfil total da história.” (p. 37).
Para Foucault, o que é mais interessante na história de Édipo, não é o drama, a tragédia, os assassinatos, o incesto... o que realmente está em jogo é a questão do poder. Afinal, o nome da peça não é Édipo, o incestuoso, nem Édipo, o assassino de seu pai, mas sim, Édipo Rei. Essa análise de Foucault é muito curiosa, bem ao estilo do filósofo, que sempre encontra “verdades ocultas” nos lugares mais óbvios.
Esse poder aparece em duas áreas, segundo Foucault. A primeira é o poder do testemunho. Cada uma das testemunhas é poderosíssima, cada uma carrega consigo informações únicas e essenciais para que a história, o destino e o julgamento de Édipo se cumpram. Se, por algum acaso, uma dessas testemunhas se omitisse por algum motivo, com toda certeza a história teria um desfecho diferente.
A segunda é a questão do poder de Édipo, poder que tem como rei de Tebas, aquele que derrotou a esfinge. Édipo não quer perder o seu poder, quer manter sua soberania a qualquer custo, por isso sempre está à procura de argumentos que possam provar a sua inocência. Não é o que acontece, as testemunhas revelam a verdade e Édipo cai em extrema desgraça, bem ao estilo das antigas tragédias gregas. O importante aqui é Édipo em sua luta para legitimar o seu poder, afinal, ele não era o rei legítimo de Tebas, era um típico tirano, segundo análise de Foucault:
“O tirano era aquele que depois de ter conhecido várias aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdê-lo. A irregularidade do destino é a característica do personagem tirano tal como é descrito nos textos gregos desta época.” (p. 44)
Referência: FOUCAULT, Michel. Conferência II. In: A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2003.